sábado, 28 de maio de 2011

Avaliando a Língua Portuguesa ...

0 Português são dois. Ou vários

Uma enorme e complexa polêmica foi criada em torno do livro Por uma Vida Melhor, distribuído pelo MEC. A importância desse debate, no entanto, está na oportunidade de clarear questões linguísticas e pedagógicas capazes de promover uma mudança positiva no ensino de língua. E não nas críticas aferradas.

     É sabido que a universalização do ensino trouxe aos bancos escolares as classes populares que antes não tinham acesso à educação. Quem frequentou a escola pública dos anos 70 deve se lembrar de que a escola era para a elite e era a elite que ensinava nessas escolas. Naquela época, vínhamos de casa já falantes da norma padrão. O cenário, hoje, é outro; e os atores vêm de famílias compostas por, muitas vezes, nenhum ente alfabetizado. É obrigação da escola ensinar a norma padrão? Indubitavelmente, continua sendo. O fato é que Drummond estava certíssimo: “O português são dois: o outro, mistério.” É nessa constatação que nós, professores de português e linguistas, nos baseamos para defender a ideia de que há várias línguas portuguesas, ou brasileiras, habitando o mesmo espaço.

     Para um aluno que chega à escola, falante de uma variante linguística de ordem diastrática (nível social), e que faz uso, para se comunicar, de frases como “nóis pega os peixe”, é improdutivo exigir que compreenda e apreenda as regras da gramática normativa de uma hora para a outra. Parece simples, “Você fala errado! Não importa que seus amigos e sua família se entendam nessa língua. O certo é ‘nós pegamos os peixes’”. Isso não funciona. Basta verificar a atuação pífia de nossos alunos nos instrumentos de avaliação. Esses alunos integram o imaginário coletivo de que a educação é a única ponte possível para se chegar à tão sonhada e necessária mobilidade social. E, de fato, deveria ser.
     É compreensível que o olhar daqueles que não enfrentam o dia a dia da sala de aula e tomam por base os resultados vergonhosos do Brasil, em exames como o PISA, seja mesmo de indignação. Mas a questão é bem outra.
     A verdade é que o aluno precisa, sim, saber que a variante de que ele faz uso não é “errada”, que essa língua de que ele se utiliza, sistematizada e interiorizada por seu grupo social, é válida. Mas é apenas uma das tantas modalidades linguísticas que um país deste tamanho possui. A norma padrão também era uma variante e foi escolhida como padrão por ser a variante linguística do grupo que gozava de melhor condição socioeconômica. Coexistiam as variantes e ainda coexistem. Não há necessidade de eliminar uma para que a outra seja única. É um olhar míope sobre nossa realidade linguística.
     Enfim, ensinar, de início, norma padrão a alunos cuja biografia linguística abarca outra variante é o mesmo que, grosso modo, ensinar as regras da língua francesa a falantes de espanhol. Ninguém entende ninguém. E o resultado é o que temos, o fracasso do ensino da língua. O conceito está corretíssimo. Equivocado é o caminho percorrido. A norma padrão, cujo ensino é, sim, obrigação da escola, deve ser o ponto de chegada e não de partida. Essa é a grande questão. O ensino da língua deve partir da observação e do entendimento da variante do aluno para a reflexão e a apreensão das normas da língua padrão.
     Esse livro não é o absurdo que parece ser. Absurdo é cortar a voz de um povo e classificá-lo como melhor ou pior pela variante que usa. Absurdo é o professor, que professa diariamente nos mais diversos rincões deste país, não ter formação e valorização necessárias para a reinvenção de suas práticas pedagógicas e dos caminhos a serem percorridos para o ensino efetivo da língua. Isso, sim, é um crime!
     Texto de Carmen Valle, professora mestre de Português e doutoranda em Letras pela Universidade Mackenzie-SP. E-mail: clbvalle@uol.com.br

Nenhum comentário:

Postar um comentário